Muitas vezes me falaram do meu bisavô, o Ati Manel. Que era assim, que era assado, que fazia isto, que fazia aquilo. Tinha um negócio de conservas, que começara a custo mas com muita garra. A Primeira Grande Guerra trouxe febre à indústria conserveira portuguesa. Em meados dos anos vinte, as fábricas nacionais andavam pelas quatro centenas. No final dos anos trinta, estavam reduzidas a menos de metade. Quando estalou a Segunda Guerra Mundial, a procura de conservas voltou a aumentar. E o Ati Manel não teve mãos a medir. Por vezes enviava pequenos embrulhos para os amigos que tinha no estrangeiro. Parece que chegavam ao destinatário como se fossem o melhor presente do mundo naqueles tempos. E eram. Ainda hoje o são, felizmente, por outras razões. A saúde do meu bisavô já fazia então, braço de ferro com a sua força de vontade. Mas ainda testemunhou a prosperidade dos anos cinquenta.
Não cheguei a conhecer o Ati Manel, nem as suas conservas. As coisas que ficaram dele na casa de Reveles foram lá ganhando o pó do tempo. Quando fizemos as partilhas, passeámos pela casa com histórias da infância entre irmãos. Demos com os olhos no alçapão que dava para a cave. E, entre livros de contabilidade e outras coisas de escritório, encontrámos um sem número de coisas ligadas à produção e comercialização das conservas: carimbos, zincogravuras, alguns quadros de serigrafia, fotolitos, tipos de madeira, cortantes, uma ou outra prova de cor, um conta-fios, clichés, pedras litográficas, chapas de offset, caixas de rótulos, selos, um caderno com fórmulas e receitas de conservação, outro com anotações do mercado no estrangeiro, outro ainda, com contactos de agentes, produtores e pescadores com notas pessoais, cartas recebidas de vários países com comentários às conservas.
Só tive olhos para estas relíquias. Como designer, coube-me esta herança. Juntei tudo, limpei, organizei, arrumei, sentindo o apelo de uma identidade marcada pelos sinais de um tempo áureo. Recuperei os alfabetos e as paletas. Refiz tramas, redes, pontos. Adaptei as estratégias gráficas às novas exigências, às especificidades e normas dos mercados em diferentes países e continentes. Renovei e atualizei as soluções, mantendo o espírito e os ambientes visuais da época do meu bisavô.
Mas tudo isto só faria sentido com um outro compromisso, com uma atenção especial às suas anotações, aos seus cuidados e ligação aos produtores, às suas exigências com a matéria prima, à sua relação com os fornecedores, com as lotas, com os pescadores – culminando nas suas fórmulas e nas suas receitas: pensando em como recuperar e manter a autenticidade de outrora, tirando partido das melhores condições atuais de produção, procurando saber como se preservava a frescura das picas, do lingueirão ou das vieiras, percebendo o modo como se escolhia o melhor azeite para as sardinhas, o cuidado com que se preparava os filetes de atum, o escabeche para mexilhões, o recheio das lulas, o molho de alho para o polvo. A mesa está posta de novo: aceite o nosso convite para se juntar à celebração das conservas Ati Manel.